No início deste mês, a União, por meio da Portaria 493/2020, editada pelo Ministério da Justiça e de Segurança Pública, autorizou unilateralmente o emprego da Força Nacional de Segurança Pública em dois municípios baianos: Prado e Mucuri. O Estado da Bahia, evidentemente, inclusive por não ter sido solicitada alguma ajuda federal, interpôs junto ao Supremo Tribunal Federal a Ação Cível Originária nº. 3427, distribuída ao ministro Edson Fachin, que determinou, em decisão liminar, a retirada, no prazo de 48 horas, de todo o contingente da Força Nacional enviado ao local.
A “intervenção” federal dar-se-ia no período de 3 de setembro a 2 de outubro e seria feita, supostamente, para dar apoio ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento no cumprimento de mandado de reintegração de posse em dois assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
Segundo constou na ação interposta pela procuradoria-geral do Estado da Bahia, “apesar da operação ter sido autorizada para a preservação da ordem pública e da incolumidade de pessoas e patrimônios, não há qualquer indício de conflitos sociais, desestabilização institucional ou riscos de outra natureza que justificassem a medida”, razão pela qual “a Força Nacional teria sido mobilizada para intervir na segurança pública do estado de forma desarrazoada e violadora de sua autonomia federativa.”
Na sua decisão de natureza liminar, o relator afirmou que o art. 4º. do Decreto nº. 5.289/2004, quando dispensa a anuência do governador no emprego da Força Nacional, viola o princípio da autonomia estadual. Este dispositivo prevê que a Força Nacional pode ser empregada mediante solicitação expressa do governador ou de ministro de Estado. Nada obstante este dispositivo normativo, e conforme observado pelo ministro Fachin, a jurisprudência da Suprema Corte consolidou-se no sentido da autonomia dos Estados, desautorizando o disposto no referido decreto.
Segundo consta da decisão monocrática, “a definição dos contornos de um federalismo cooperativo pressupõe que os entes federados sejam permanentemente protegidos contra eventuais tendências expansivas dos demais.” Ademais, conforme também ressaltado pelo relator, a Lei nº. 11.473/2007 estabelece a necessidade de um convênio entre as partes sempre que houver a necessidade de uma operação dessa natureza. Assim, nos termos da decisão preliminar, seria “necessária uma concorrência de vontades para que não se exceda o limite constitucional de proteção do ente federado.”
Por fim, justificando ainda a liminar, o relator referiu-se aos “enormes riscos para a estabilidade do pacto federativo, acrescidos ainda das circunstâncias materiais da ação, isto é, o exercício dos poderes inerentes à segurança pública e o possível uso da violência”, lembrando também que o “quadro geral de pandemia da Covid-19 exige que a mobilização de contingentes de segurança seja sensivelmente restrita e sempre acompanhada de protocolos sanitários.”²
Após a concessão da liminar, já na sessão realizada no último dia 24 de setembro, e por maioria de votos, o plenário do Supremo Tribunal Federal referendou a decisão do ministro relator, confirmando a necessidade da retirada de todo o contingente da Força Nacional enviado aos dois municípios baianos, firmando-se, doravante, o entendimento que “a utilização da Força Nacional sem a autorização do governador viola o princípio constitucional da autonomia dos estados.”³
Apenas o ministro Luís Roberto Barroso considerou legítimo que a Polícia Federal solicite o auxílio para proteger o patrimônio da União, em razão do disposto no art. 4º. do Decreto nº. 5.289/2004, que autoriza a atuação da Força Nacional por solicitação de governador ou de ministro de Estado, não havendo, segundo ele, violação da autonomia dos entes federados.
Pois bem.
Como se sabe, e segundo se depreende do art. 18 da Constituição Federal, a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, entidades autônomas que formam a estrutura federativa brasileira. Estes entes federados detêm autonomia, seja em razão da existência de um governo local (com órgãos governamentais independentes da União), seja porque possui competências exclusivas, com plena capacidade normativa a respeito de determinadas matérias (neste sentido, veja-se, dentre outros, os arts. 17, 23, 24, 25, 29, 42 e 32, da Constituição Federal).
Apenas se admite a quebra do equilíbrio federativo, muito excepcionalmente, no caso de intervenção federal nos Estados e no Distrito Federal, e dos Estados nos Municípios, nas situações expressamente previstas nos arts. 34 a 36 da Constituição. Esta medida extrema – que, de toda maneira, fere a autonomia federativa, mas está prevista na própria Constituição -, afastando temporariamente a atuação das entidades federadas, “só há de ocorrer nos casos nela taxativamente estabelecidos e indicados como exceção ao princípio da não intervenção.”4
Esta autonomia dos entes federativos, como é evidente, decorre da própria concepção de federalismo que, em razão de “sua envergadura histórica e sociológica, é uma tendência natural da organização social, sendo, por isso, mais amplo do que qualquer ordem jurídica ou mesmo política.”5
Neste modelo, como diz também Afonso Arinos, são mais valorizadas “as relações de coordenação do que as relações de subordinação”, afinal “toda centralização tende à subordinação, e, consequentemente, à hierarquia e à disciplina rígidas.” Para ele, neste aspecto específico, o federalismo é um verdadeiro “processo de garantia da liberdade, desde que levada a efeito dentro da ordem jurídica e dentro de um esquema geral intangível.”6
Também abordando o mesmo tema, ainda que sob a ótica da ordem jurídico-constitucional inaugurada pela Constituição de 1946, anota Pinto Ferreira que “a verdadeira doutrina a explicar o regime de relações entre a União e os Estados-membros é a teoria da descentralização política, consistente na repartição de competências entre os órgãos centrais e os órgãos locais.”7
Também comentando a Constituição de 1946, certamente (até então) a mais democrática da República, Pontes de Miranda afirmava que “no Estado federal a união é permanente, ou baseada no que quiseram os Estados-membros, ou no que o povo dele, Estado federal, que antes não o era, quis. E a verdade histórica e doutrinária, a respeito do Brasil, é a última.” Para ele, nada obstante, a federação não ser uma mera medida técnica de descentralização, nela “cada parte tem (ainda imaginariamente) o seu status e perde algo dele em proveito comum”, conferindo-se aos Estados-membros um pouco do que era central.8
Na doutrina estrangeira, destaca-se Häberle, para quem o Estado federal “é uma estrutura constitucional que frequentemente é entendida como mero ´princípio da organização estatal`, mas que hoje constitui um princípio material essencial da Constituição da cultura.” Para ele, “a estrutura do Estado federal é parte integrante do Estado constitucional.”9
Ainda analisando o princípio federativo, e desde o ponto de vista da Alemanha unificada, Häberle destaca com um dos seus pilares exatamente “a distribuição de competências entre a Federação e os Länder, como uma ´importante manifestação do princípio federativo… e ao mesmo tempo como elemento de uma divisão funcional adicional dos poderes. Esta manifestação distribui o poder político e estabelece um marco jurídico-constitucional para seu exercício.`”10
Ora, evidentemente, e apesar do entendimento de um dos ministros da Suprema Corte, não se compatibiliza com os princípios de uma república federativa uma intervenção federal como a que foi levada a cabo neste caso. Aqui, sem dúvidas, reflete-se um caráter autoritário de um governo que, de mais a mais, parece ignorar os laços democráticos e republicanos que devem unir as relações entre a União e os Estados.
Deve ser veementemente afastada qualquer tentativa – ainda que eventualmente respaldada por um dispositivo normativo inconstitucional – de intromissão federal nas coisas pertinentes à competência do Estados, ainda mais quando o próprio ente federativo dispensa tal ajuda, tratando-se, sem dúvidas, de um traço autoritário na condução do governo.
Aqui, por óbvio, utiliza-se o substantivo autoritarismo (respaldando-se na lição de Bobbio, Matteucci e Pasquino) em dois dos seus possíveis contextos: como uma disposição psicológica a respeito do poder e como uma manifestação de uma ideologia política.11 No sentido psicológico, e num certo aspecto, pode ser identificada uma personalidade autoritária quando há uma “disposição em tratar com arrogância e desprezo os inferiores hierárquicos e em geral todos aqueles que não têm poder e autoridade.”12
Por fim, e muito a propósito do caso brasileiro, é necessário ter em conta que o autoritarismo, muitas vezes, “conquistou adeptos pelo que fez e não apenas pela imagem que apresentou a si mesmo. Ainda mais que muitas dessas grandes ‘conquistas` tivessem um alto preço a ser pago mais tarde, no curto prazo elas possibilitaram que a ditadura se estabelecesse, prosperasse e ficasse mais ambiciosa.”13
É preciso, portanto, atenção!