Segunda-Feira, 19 de maio de 2024
Justiça no Interior

Psicopatia e violência doméstica: uma questão de revisão normativa e implementação de Políticas Públicas – Rafaela Alban

Foto: Arquivo Pessoal

TEXTO PUBLICADO INICIALMENTE NO BOLETIM DO SINDICATO DOS DELEGADOS DE POLÍCIA DO ESTADO DA BAHIA

A violência doméstica é um tema que faz parte do cotidiano, visto que, corriqueiramente, mulheres são vítimas de agressões físicas, sexuais, patrimoniais, psicológicas e morais, perpetradas por pessoas pertencentes a sua unidade doméstica, familiar ou com quem detém, ou já detiveram, relação íntima de afeto.

Como um problema social que impõe a criação e implementação de políticas públicas, a violência doméstica tem sido analisada sob diversas óticas, inclusive no que diz respeito à necessária compreensão das suas causas e das correlações com características individuais dos agressores. Nesse aspecto, vários estudos e investigações se propõem a identificar patologias ou características da personalidade que possam vir a ser determinantes no envolvimento de sujeitos em comportamentos domésticos violentos.

Como resultado desses estudos, é comum a associação de indivíduos agressores à diagnósticos de transtornos mentais ou de personalidade, o que impõe uma reflexão acerca da necessidade de implementação de programas de prevenção e intervenção mais adequados, especialmente diante das discussões dogmáticas do Direito Penal quanto à (in)imputabilidade dos detentores dessas patologias e ao imperativo de conceder efetividade ao combate à violência doméstica contra a mulher.

Dentre as patologias, principalmente em razão de comportamentos reflexos adotados nos seios de maior convivência, chama a atenção a figura da psicopatia ou sociopatia, caracterizada tecnicamente como um Transtorno de Personalidade Antissocial, segundo o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais de 2014 (DSM-5).

O diagnóstico do Transtorno de Personalidade Antissocial é realizado, dentre outros fatores, a partir da seguinte anamnese: ausência de emoções, comportamentos indiferentes quanto aos sentimentos de outros indivíduos, ausência de tolerância a frustrações, desprezo por ordem/normas e possibilidade de exaltação de fúria em atos violentos ou cruéis. O psicopata é, portanto, um indivíduo com eloquência e superficialidade, egocêntrico e grandioso, enganador, manipulador e detentor de emoções superficiais e efêmeras.

Embora não apresente indícios clássicos de portadores de doença mental (ausência de desenvolvimento cognitivo), o psicopata é capaz de apresentar sinais de insensibilidade e de falta de empatia, remorso ou culpa, que caracterizam a adoção de um comportamento socialmente atípico.

Quando tais características são examinadas no âmbito doméstico e familiar, é possível reconhecer atitudes e condutas frequentes relacionadas à falta de laços afetivos, educação excessivamente punitiva, exigências irracionais, palavras ou ações violentas, abuso de álcool ou drogas, utilização da mentira, relações interpessoais de mero prazer, diversão, perversão ou status e uma capacidade de levar uma convivente ao seu limite.

Até mesmo por isso, é necessário observar que o comportamento violento, doméstico, familiar ou afetivo, do homem contra a mulher não deve ser rotulado como simples fruto de imposição de poder, de dominação masculina ou submissão feminina, devendo ser estudado de forma mais ampla, com o escopo de compreender adequadamente aspectos psicológicos e psicopatológicos do agressor, até mesmo para o alcance efetividade da Lei Maria da Penha.

Afinal, é por demais sabido que o simples ato de criminalizar as agressões, de estabelecer medidas protetivas que obrigam o agressor e que tutelam a integridade da ofendida não resolve o problema social da violência doméstica que, em grande parte dos casos, está associado a diagnóstico de uma patologia incurável, que possui, dentre as suas principais características, a insensibilidade e o desrespeito às regras.

Isso porque, não sendo possível a classificação do transtorno como uma “doença mental”, mas havendo afetação da capacidade volitiva e necessidade de controle medicamentoso, estar-se diante de uma discussão dogmática acerca da caracterização de uma situação jurídica de imputabilidade, semi-imputabilidade ou inimputabilidade, que pode vir a esbarrar em questões penais relativas à duração máxima da pena privativa de liberdade, em discussões éticas relativas à imposição de tratamento e em aspectos médicos associados à ausência de cura que sirva de parâmetro para a duração de uma medida de segurança.

De fato, não havendo que se falar em “doença mental”, quiçá em qualquer comprometimento – total ou parcial – da capacidade intelectiva, de compreensão do caráter ilícito do fato (na forma do art. 26, CP), parece mais adequado o tratamento do psicopata como um sujeito imputável (que excepcionalmente depende de tratamento médico) e, portanto, passível de responsabilização através de uma pena e de submissão a qualquer das medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha.

Entretanto, a questão crucial é observar a dificuldade da vítima de violência doméstica de denunciar o agressor psicopata (usualmente estrategista e manipulador), o raro atendimento das obrigações impostas (diante do característico descumprimento de normas) e a incompatibilidade das medidas protetivas legais com a situação específica (que impõe, mais do que o afastamento do lar e proibição de contato, a inclusão do indivíduo em programas de tratamento médico especializado).

Portanto, uma vez já evidenciada o grande número de casos de violência doméstica praticados por portadores de transtornos de personalidade, resta imperiosa agora uma revisão normativa, para inclusão de Medidas Protetivas relativas a tratamentos medicamentosos, e, principalmente, a adoção de outras políticas públicas, até mesmo no sentido de implementação de um cadastro de portadores dessas patologias. Afinal, lamentavelmente, os instrumentos normativos atuais não estão aptos a resolver essa questão!

Rafaela Alban

Advogada; Doutora e Mestra em Direito Público, na linha de Direito Penal (UFBA); Especialista em Ciências Criminais (UFBA), em Direito Penal Econômico (Coimbra) e em Teoria Jurídica do Delito (Salamanca); Professora de Direito Penal e Processo Penal do Centro Universitário Jorge Amado. (UNIJORGE).


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