Domingo, 19 de maio de 2024
Justiça no Interior

O caso de Mariana Ferrer e o machismo no Direito: precisamos falar sobre isso! – Luciana Santos Silva

Não pretendo, no presente escrito, discorrer sobre a sentença que absolveu André Aranha da acusação pelo crime de estupro de vulnerável. Minha perspectiva de analise visa problematizar a condenação de Mariana Ferrer. O Brasil está no 5º lugar dos países que mais matam mulheres no mundo no contexto de violência doméstica segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde). À par das cifras ocultas, a violência doméstica e intrafamiliar com a mulher no país é alarmante.

Essa triste realidade é sustentada pela cultura patriarcal que reifica e inferioriza tudo o que é ligado ao feminino. A violência contra os corpos das mulheres (lesões corporais, estupros, feminicídios etc.) é precedida por uma outra violência: o machismo estrutural. Somos violentadas quando sofremos agressões físicas, mas também quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identifica que mulheres ganham menos do que os homens em todas as ocupações selecionadas na pesquisa; quando somos sub representadas na política, na cúpula do Poder Judiciário e nas nossas entidades de classe mesmo quando somos maioria na base.

É nesse cenário que o campo jurídico está inserido podendo referendar posições machistas ou superá-las. No caso de Mariana Ferrer prevaleceu a primeira opção. Na sessão de audiência a posição processual de Mariana Ferrer foi invertida. De vítima ela passou a ser acusada e, ato contínuo, condenada pelo advogado de André Aranha sob o referendo silencioso das demais autoridades presentes no ato.

A inversão dos pólos processais e a estigmatização da vítima nos crimes de violência contra a mulher, é uma expressão do machismo na medida em que o comportamento  feminino passa a ser o centro do julgamento. Em 2019 foi amplamente divulgado a absolvição do crime de estupro de vulnerável  em que um motorista de aplicativo era acusado. Em seu voto a desembargadora relatora, Cristina Pereira Gonzales, afirma que “se a ofendida bebeu por conta própria, dentro de seu livre arbítrio, não pode ela ser colocada na posição de vítima de abuso sexual pelo simples fato de ter bebido“. Assim como no caso de Mariana Ferrer os argumentos esposados julgam e condenam o comportamento social da vítima invisibilizando a conduta criminosa objeto e razão de existência do processo. A análise dos elementos típicos do crime de estupro cede lugar ao debate sobre o comportamento da vítima, a roupa que usava e o local em que estava.

A expressão de machismo no campo jurídico não é um fenômeno restrito aos dois casos citados. O direito penal até o ano de 2005 tratava o crime de estupro como crimes contra os costumes e a condição da vítima enquanto mulher honesta era requisito de tipificação de algumas infrações. Os movimentos feministas, importante registrar, atuaram e atuam de forma coordenada denunciando as expressões de patriarcalismo na lei, doutrina e na atuação prática do campo jurídico forçando mudanças em prol da igualdade entre mulheres e homens.

A cultura machista impõe um lugar social de subalternidade e silenciamento para o feminino. A audiência do caso Mariana Ferrer se constituiu em verdadeira violência institucional ferindo o dever de tutela da dignidade humana pelo campo jurídico. A inversão dos papéis vítima/acusado fortalece o medo das mulheres formalizarem denúncias favorecendo a impunidade e, em última instância, a cultura do estupro. Se a culpa é da vítima, o recado é: pode estuprar. É pela construção da igualdade de gênero que precisamos falar sobre machismo no Direito!

Luciana Santos Silva

Advogada, Presidente da OAB-Conquista, 2022-2024, ex-conselheira Seccional da OAB/BA, feminista, professora do curso de direito da UESB e doutora pela PUC/SP.


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