Foto: Arquivo Pessoal
INTRODUÇÃO DO LIVRO “FUNDAMENTOS DO DIREITO À CIDADE”, LANÇADO EM 2023
Por que “introduções” e não simplesmente “introdução”? A cidade não é um objeto de análise dotado de apenas uma via de entrada. Podemos ingressar em seu território das mais diversas formas: pelo sistema viário, pelas linhas férreas, por um aeroporto, por um cais… Não se trata, pois, de uma “casa com apenas uma porta”.
Do mesmo modo, os diferentes “cômodos” dessa complexa moradia chamada cidade possuem inúmeras portas que os ligam entre si e são percorridos de diferentes formas, em diferentes tempos e intensidades, seja a pé, de ônibus, de metrô ou por outra via. Alguém que chega de avião em uma cidade como São Paulo e passa dois dias transitando apenas nos elitizados bairros do quadrante sudoeste da capital não terá uma impressão semelhante à de quem chegou de trem em uma grande estação de transbordo e se dirigiu a algum bairro da periferia, sempre disputando milímetros de espaço com a multidão.
Mesmo para aqueles que transitam pelos mesmos espaços, a cidade poderá ser interpretada, vista e sentida de diferentes formas. As experiências de vida, o conhecimento de mundo, o meio de locomoção, são alguns dos fatores que interferirão na leitura desses espaços. Mesmo que atravessem as mesmas portas, as pessoas lançam seus olhares para diferentes janelas e constroem diferentes ideais de vida urbana.
No campo teórico, a cidade também revela ser uma realidade de muitas portas. Os recantos urbanos são exemplos perfeitos de como um mesmo fenômeno pode ser objeto dos mais diversos ramos do conhecimento. Na verdade, a interdisciplinaridade não é apenas um mecanismo de efetivação metodológica; trata-se, na maioria dos casos, da única forma possível de as Ciências Humanas captarem as particularidades do objeto analisado. É necessário que os diferentes agentes que abordam a realidade urbana (arquitetos, urbanistas, sociólogos, operadores do Direito, antropólogos, geógrafos, economistas, militantes de movimentos sociais, administradores públicos e tantos outros) ingressem conjuntamente nesse campo teórico e prático, cada um por sua porta, para que as particularidades dos fenômenos citadinos não escapem pela abertura que se revelar desocupada. Na fluidez da cidade, o conhecimento é fugidio.
Não por acaso, temos grandes exemplos de cientistas que, ao procurar compreender a realidade urbana, irão encontrar boa parte das respostas em áreas distintas do seu ramo de conhecimento – ou seja, aprenderão a atravessar outras portas. David Harvey, geógrafo estadunidense, irá explorar a fundo as questões econômicas que movem a especulação imobiliária e acabam por comprometer a produção de cidades mais justas; Alessia de Biase, arquiteta italiana, utilizará procedimentos da Antropologia para propor novas formas de se visualizar e interpretar o fenômeno urbano; e o que dizer de Milton Santos, outro geógrafo, cujas abordagens sobre as cidades da periferia do capitalismo são carregadas de princípios metodológicos da Antropologia, da Sociologia e da História?
A própria expressão “Direito à Cidade” não foi criada por um jurista, mas por um sociólogo – o francês Henri Lefebvre, que, em 1968, lançou obra homônima. Desde então, o Direito à Cidade tem sido debatido por cientistas das mais diversas áreas, que o tomam não apenas como objeto de estudo, mas, acima de tudo, como bandeira e como utopia.
E o que seria o Direito à Cidade? Ele é tratado mundialmente como um inovador direito fundamental ligado às condições de dignificação da existência humana, da igualdade, da liberdade. Ele também é um direito continente, que carrega dentro de si os conteúdos dos principais direitos sociais, como moradia, educação, trabalho, saúde, dentre outros. O Direito à Cidade, ao mesmo tempo em que sustenta que as pessoas devem se instalar devidamente na cidade e ter acesso à infraestrutura urbana (direito de apreensão), defende que cada indivíduo seja um idealizador de sua própria urbe, possibilitando a construção de realidades externas mais compatíveis com seus anseios e expectativas (direito de obra).
Buscando um enfoque mais crítico, a presente obra não se ocupará apenas da delimitação do conteúdo do Direito à Cidade. De fato, antes mesmo da discussão conceitual, é imprescindível que nos debrucemos sobre a contextualização do cenário onde se busca a sua realização, bem como lançar luzes sobre os principais obstáculos a sua materialização.
Pensando no cenário global e nos obstáculos interpostos ao pleno exercício do Direito à Cidade, constatamos que o enfoque sobre a efetivação de qualquer direito fundamental não pode se dissociar de uma teoria crítica que questione o próprio modelo de desenvolvimento econômico vigente. Como concretizar valores de justiça social e qualidade de vida nas cidades, se os valores dominantes de nosso tempo são a concorrência, a individualidade, o consumismo?
O sistema capitalista, ao se apropriar da cidade, mercantiliza seus espaços e transforma a qualidade de vida em um bem de elevado preço, que poucas pessoas conseguem obter. A vida urbana se torna um mero item de consumo (HARVEY, 2013), já que as condições mais básicas para a sobrevivência são constantemente negadas à população desfavorecida economicamente: habitação, saneamento básico, serviços de saúde e segurança pública. É um sistema que costuma cobrar um preço para cada porta que se queira atravessar. E o que é o Direito à Cidade, se não a possibilidade mais real de tornar essas travessias mais acessíveis.
Cláudio Carvalho
É graduado em Direito pela Universidade de Taubaté.
Mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos.
Doutor em Desenvolvimento e Planejamento Urbano pela Universidade de Salvador.
Professor Titular de Direito Ambiental, Urbanístico e Agrário da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Raoni Rodrigues
Graduado em Direito pela Faculdade de Tecnologia em Ciências
Pós-graduado pela Universidade Federal da Bahia
A obra será lançada na quarta-feira, 17, às 18h, no Teatro Glauber Rocha, na Uesb de Vitória da Conquista.