Quinta-Feira, 9 de maio de 2024
Justiça no Interior

Como os médicos podem proteger judicialmente a sua atuação na relação com pacientes — Por Flávia de Mello

Foto: Arquivo Pessoal

 

Por Flávia Mello

 

No dia 18 de outubro é celebrado o Dia do Médico no Brasil, que tem origem cristã em decorrência de também ser celebrado o Dia de São Lucas, um santo que em vida – conforme registros – foi médico e, por isso, é considerado o protetor dos médicos pelos católicos.

 

A medicina é uma profissão das mais antiga, os médicos e a medicina são mencionados na Bíblia diversas vezes, havendo de início a concepção de que o enfermo estava sob as mãos de divindades retirando do médico as consequências das decisões tomadas, uma vez que ele era o “instrumento” divino, uma espécie de sacerdote envolto de poder sobre os corpos. 

 

Posteriormente coube à Hipócrates o distanciamento das práticas místicas, a racionalização da medicina e consequente abertura ao saber científico deixando o médico de ser um instrumento dos deuses, mas ainda se mantendo a noção de poder entre o médico e paciente em uma relação paternalista. Neste modelo, cabia – única e exclusivamente – aos médicos a tomada de decisões acerca da saúde do seu paciente, vez que – segundo a ética hipocrática – a medicina era exercida segundo os critérios da beneficência pelo que as decisões médicas sempre seriam tomadas em prol da saúde do indivíduo, não carecendo da prévia anuência do paciente. 

Entretanto, essa relação concebida na antiguidade – e por mui tempo desenvolvida, cada vez se faz menos presente. Na realidade de hoje – com a massificação das relações sociais, surgimento de novas tecnologias e a possibilidade de acesso às informações, a relação médico-paciente tem se distanciado e se apresentado cada vez menos pautada na confiança irrestrita. Hoje o paciente tem lançado mão do poder de questionar a conduta dos profissionais médicos, evidenciando sua autonomia como fator elementar em determinadas situações saindo-se cada vez mais da relação antes paternalista para a de compartilhamento de decisões entre os sujeitos envolvidos.

Neste novo contexto, nem sempre as relações se dão da forma como esperada, pois nem sempre as expectativas são supridas, não por descaso do profissional, mas, sim, em decorrência das particularidades de cada um, de uma comunicação deficiente, dentre outros. Não há como dimensionar de forma exata e específica aquilo que o outro espera das nossas ações, mas numa relação de cuidado é sempre necessária uma escuta atenta e qualificada, bem como se alicerçar de informações e cuidados – a fim de evitar eventuais situações que possam alimentar ruídos de informações desencadeando até mesmo eventuais processos judiciais, que para demandas do tipo são longas, desgastantes e caras. 

Assim, para o melhor exercício de sua profissão, com confiança e autonomia, o profissional médico deve estar atento, primeiramente, para as normas de conduta estabelecidas em seu Código de Ética. Em caso de dúvidas, o melhor proceder é formalizar um questionamento perante seu Conselho Regional, a fim de se ter uma manifestação formal que lhe traga segurança em sua atuação evitando que incorra em alguma irregularidade e eventual futuro processo ético-disciplinar.

Também como forma de assegurar a sua atuação, é recomendável que o profissional médico sempre que possível procure estar assessorado por profissionais da área jurídica com conhecimento específico na área. Não é novidade a progressiva quantidade de demandas em que médicos figuram como parte, pelos mais variados motivos, e nas mais variadas esferas – sejam elas ética, cível ou penal. Assim, buscar um acompanhamento jurídico tem-se mostrado como a melhor das estratégias. 

O conhecimento jurídico das eventuais consequências da atuação pode precaver o profissional médico quanto a importância do preenchimento de um prontuário; do uso de uma letra legível nos registros e prescrições que venha efetuar; do que fazer em situações de alta a pedido do paciente, e como e onde registrar; das questões de sigilo, ou em que o profissional deve proceder de outra forma; das situações relativas aos plantões que venha, ou deixe de realizar; dos cuidados que se deve ter ao atuar como diretor técnico ou clínico; o que pode publicizar como qualificação técnica, e como deve fazer, já que isso pode incorrer em infração ética; no apoio técnico para a elaboração de termos de consentimento livre e esclarecido que realmente alcancem o fim a que se destinam, não documentos genéricos que largamente não vem sendo aceitos pelos conselhos e pela jurisprudência atual; na elaboração de documentos médicos que realmente guardem relação com a sua prática, e que realmente possam trazer a segurança e todas as informações necessárias, a fim de lhe resguardar e comunicar de forma eficaz ao seu paciente, ou outro profissional de saúde, ou qualquer outra pessoa as informações que ali contenha; todos os cuidados que se deve ter em virtude da LGPD, ainda mais tendo em vista os dados sensíveis que se tem acesso;  orientação quanto a necessidade, e termos, na contratação de seguros responsabilidade; bem como o acompanhamento em demandas que já configure como parte buscando, inclusive, outros meios de resolução deste conflito como uma eventual conciliação, mediação, arbitragem, o uso desses meios de forma combinada, ou outras ferramentas, mas sempre fornecendo a segurança e conhecimento técnico e jurídico que o profissional médico necessita para a gestão da situação.

No mais, é também fornecer as informações quanto as possibilidades e cuidados que se deve ter com a publicidade médica. O Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou recentemente, em 13 de setembro de 2023, a Resolução CFM nº 2.336/2023, que dispõe sobre publicidade e propagandas médicas e que começará a valer a partir de março de 2024. Tal resolução busca adequar a publicidade médica aos meios de comunicação tecnológicos, ainda que com certos limites e precauções. Então, o profissional – mesmo com a ampliação que será dada – deve estar atento para evitar eventual infração ética por algo que seria evitável.

Na medicina, como não poderia deixar de ser, é o Código de Ética Médica que norteia a profissão. No entanto, seja em função do tempo corrido, da grande necessidade de se aprimorar constantemente na parte técnica, nem todos têm em mente todos os detalhes do Código, bem como toda a nossa legislação e entendimentos dos CRMs, CFM, e jurisprudência sobre temas da área na cabeça. Portanto, a melhor conduta de cuidado do médico para com si, ao nosso ver, é este buscar a sua qualificação e atualização para garantir o bem-estar do seu paciente, e para a melhor execução de sua atuação profissional com confiança e segurança estar bem orientado juridicamente, sempre buscando ter a sua disposição profissionais e ferramentas que possam auxiliá-lo na prevenção, minimização, ou melhor gestão de eventuais questionamentos ou conflitos que surjam.

 

Flávia Mello é advogada há 12 anos. Pós-graduada em Direito Médico, Bioética e Direito à Saúde e Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade Baiana de Direito. Membro da Comissão Estadual de Saúde Pública da OAB Bahia (2022-2024), Membro da Comissão de Direito Médico e Saúde da OAB/BA, Subseção de Vitória da Conquista (2022-2024), Membro do Conselho de Ética e Pesquisa do Hospital da Bahia, Salvador/Bahia (CEP HBA). Ela também é participante de grupos de pesquisa nas áreas de Direito Sanitário, Direito à Saúde, Direito Médico e Sistema Multiportas de Resolução de Conflitos. Atualmente ela compõe o Grupo de Estudos Aplicados em Direito Sanitário “Nelson Rodrigues dos Santos” (GEADS/IDISA).


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