Quarta-Feira, 30 de outubro de 2024
Justiça no Interior

“A gente ainda vive em um sistema muito patriarcal”, afirma Juíza, Janine Ferraz

Foto: Arquivo Pessoal

Por: Justiça no Interior

Na conversa, ela apontou que considera que o sistema judiciário ainda é “muito patriarcal”, e que as juízas ainda sofrem com a cultura machista. Janine também destacou que na cidade de Poções houve um aumento de 11% nos casos de violência contra mulher, desde o início da pandemia. CONFIRA: 

JUSTIÇA NO INTERIOR (J.I.): Uma magistrada está inserida dentro de uma relação de poder perante a sociedade. Quais desafios são encontrados na profissão? 

JANINE FERRAZ (J.F.): Os desafios encontrados na profissão são diversos. Em relação à questão da proteção à violência contra mulher, eu entendo que eles começam desde a proteção de nós, como juízas, dentro do sistema de Justiça. A gente ainda vive em um sistema muito patriarcal. Dentro do sistema somos, vez ou outra, destinatárias de ações de uma cultura machista. O grande desafio é, realmente, superar essa cultura patriarcal. A diferença nas relações de poder, a ideia de que há uma superioridade masculina e que essa superioridade autoriza o cometimento de violências. No ponto de vista prático, eu entendo que uma das maiores dificuldades que nós temos na profissão para fazer a proteção da violência contra mulher, é a interoperabilidade. Existe a necessidade de melhorar a comunicação entre os órgãos do sistema de Justiça, desde o atendimento da mulher no sistema de saúde, até chegar ao sistema de Segurança Pública, Ministério Público e chegando aqui no Poder Judiciário.

J.I.: Durante a pandemia, as famílias ficaram mais próximas, dentro de casa. Em Poções houve aumento de casos de violência contra mulher?

J.F.: Na minha Comarca a demanda de casos de Violência contra Mulher é significativa. Considerando o nosso acervo, eu posso dizer que é uma das principais. Com apoio da Polícia Militar, a gente conseguiu mensurar um efetivo aumento dos casos de violência contra mulheres. Houve um aumento de aproximadamente 11%, mas houve um aumento em intensidade de 57%. Ou seja, na pandemia não aumentou só a quantidade, mas a intensidade da violência contra mulher.

J.I.: E quanto às solicitações de medidas protetivas?

J.F.: Em relação às medidas protetivas registramos um movimento bem interessante aqui na Comarca. A partir do momento em que o poder público municipal estruturou o Centro de Apoio às Mulheres e, que nesse Centro, elas passaram a receber um atendimento psicológico, jurídico e de assistência social, a quantidade de pedidos de medidas protetivas foi significativamente reduzido. Um ponto importante da gente entender que, muitas vezes, a mulher não tem a necessidade de ser atendida pelo poder judiciário, mas por outras áreas do conhecimento. O Centro tem conseguido dar o apoio às mulheres, orientações necessárias e, com isso, tem chegado à Delegacia e ao Poder Judiciário casos que, efetivamente, precisam de uma atenção maior.

J.I.: Como vem sendo feito o combate violência contra mulher na Comarca?

J.F.: Aqui em Poções nós temos buscado fazer um trabalho muito interoperacional, de um diálogo profundo entre as instituições. Um dos exemplos que eu posso citar é que através do Projeto Coração de Tinta nós temos promovido, em convênio com o Comando de Policiamento da Região Sudoeste, palestras para as tropas da Polícia Militar. Outra vertente também é a estruturação dos Cejusc (Centro Judiciário de Solução Consensual de Conflitos da Comarca) para que a gente possa desenvolver práticas restaurativas envolvendo as pessoas que estão nessa espécie de conflito. No meu gabinete a gente tem priorizado os processos de violência contra mulher, dado prioridade absoluta para poder cumprir as metas do CNJ. Julgar os feminicídios como prioridade. Sempre que uma Medida Protetiva chega, tramitá-la com a devida urgência.

J.I.: A denúncia ainda é a principal maneira de poupar vidas?

J.F.: Eu entendo que a denúncia é muito importante, mas o fortalecimento da mulher, a perda do medo, quando uma mulher toma a vida dela de volta para si, eu diria que é a principal maneira de poupar a vida. Por mais que a gente faça nosso trabalho da melhor maneira, da maneira mais eficiente possível, com maior cuidado possível, se a mulher não decide tomar a vida dela para si de volta, tomar o controle da vida dela de volta, a gente não consegue fazer a proteção. A partir do momento que essa mulher tem a decisão interna de tomar a vida dela de volta, retirar da mão do agressor o controle sobre a sua vida, aí nós conseguimos apoiá-la. E, aí sim, é importante que todos sistema esteja a postos, com interoperabilidade, com uma comunicação eficiente, com tratamento cuidadoso e acolhedor. 

J.I.: Quais principais pontos o direito da mulher precisa avançar e o que é necessário para isso?

J.F.: Eu observo que nós já temos uma legislação muito bem estruturada, talvez uma das melhores. A gente precisa passar, realmente, por uma virada cultural para a gente vencer uma cultura patriarcal, uma cultura machista. Eu entendo que a gente deve avançar na educação de nossos meninos e meninas, dialogar mais a respeito disso, dialogar entre as instituições. Que as instituições se aproximem mais umas das outras e compreendam a vivência de cada uma, para poder cooperar no processo como um todo. O trabalho de proteção à mulher é um trabalho de equipe.

J.I.: As mulheres são maioria na sociedade, mas não no judiciário. O que fazer para mudar isso?

J.F.: O acesso ao cargo público, ao poder judiciário, se dá através de concurso público e o concurso público é uma seleção extremamente rigorosa, difícil e que demanda de nós, mulheres, um sacrifício muito, muito grande, comparado aos nossos colegas homens. Na minha realidade, tive um suporte grande que veio dos meus pais, do meu esposo, que foi um grande motivador e dividiu comigo, como deve ser feito, toda a responsabilidade da maternagem, paternagem. Esse acesso ao judiciário ele vem, mais uma vez, dessa superação do patriarcado. Para a mulher alcançar esses espaços, ela precisa que as obrigações sejam assumidas de forma igualitária, como deve ser. E aí, uma vez que ela tendo essas oportunidades, entra a questão da dedicação e do mérito. Mas não é só uma questão de mérito, definitivamente.


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