Foto: Arquivo Pessoal
TEXTO PUBLICADO INICIALMENTE NO MEU SITE JURÍDICO
É comum no cotidiano das pessoas perdoar, deixar para lá, condutas e fatos do outro. A humanidade que nos caracteriza é, por essência, imperfeita e, por conta disso, é natural que certos atos e condutas produzam mágoa, chateação, desconforto….
O perdão, nesse contexto, serve como instrumento para viabilizar as relações humanas.
O homem é ser gregário. Porém, cada um carrega consigo, como tatuagem, as marcas de sua história familiar e pessoal: as fraquezas, os fracassos, as alegrias, as tristezas, os desejos, os anseios…. E, assim, naturalmente, o convívio entre os humanos gera tensões, conflitos, que decorrem, em última análise, da própria essência humana.
Isso não mudará. Até porque continuaremos vivendo e convivendo. E continuaremos tendo de “perdoar e ser perdoado, compreender e ser compreendido, amar e ser amado”, como vaticina a sensível e isonômica Oração de São Francisco. Não teremos a pacata e solitária vida de Robinson Crusoé (que, em sua ilha deserta, somente tinha a companhia do Índio Sexta-Feira) ou do Náufrago, protagonizado por Tom Hanks (que, por seu turno, se restringia ao convívio com Wilson – uma bola de tênis, com quem não conseguia desenvolver conflitos por motivos óbvios).
O perdão integra a própria falibilidade humana, decorrente de sua humanidade. Não há como conviver sem perdoar. É bem verdade que alguns perdoam mais facilmente. Para outros, o preço do perdão são horas de choro ou conversa. Até os escorpianos (que, aparentemente ao menos, não conjugam o verbo perdoar) perdoam!
Chamo a atenção, todavia, para algo de grande relevância: o pressuposto do perdão é o esquecimento!!! Quem perdoou não pode lembrar posteriormente do episódio como uma espécie de chantagem diferida no tempo. Até porque a pessoa perdoada estabelece a lícita e justa confiança de que o fato está encerrado pelo perdão concedido. Em linguagem jurídica, viola a boa-fé relembrar acontecimentos perdoados!!! Seria permitir a criação de “expectativas desleais”, como diz a música da VANESSA DA MATTA.
Dizer que perdoa, mas não esquece, significa não perdoar!!! É guardar consigo, e em si, o sentimento negativo decorrente de uma situação pretérita.
Não se estando pronto para o esquecimento, não é o momento de perdoar. É melhor, então, dar um tempo para o próprio tempo porque, como diz o poeta contemporâneo LULU SANTOS, “tudo muda o tempo todo no mundo”. Alias, bem antes dele, HERACLITO, um dos mais influentes filósofos pré -Socrático, bem afirmava ser impossível se banhar duas vezes no mesmo rio, exatamente porque as águas passam e mudam.
Nessa ordem de ideias, por conseguinte, a conclusão a que se chega é que se o perdão integra a nossa humanidade, o esquecimento também está em nossa essência. Alias, não raro, muita vez, o esquecimento faz mais bem a quem está perdoando (e esquecendo) do que a quem foi perdoado.
Poucos conseguiram expressar tão bem essa percepção quanto FABRÍCIO CARPINEJAR: “a saudade já é perdão. Sentir saudade é desculpar. Se você vem sentindo saudade é que esqueceu, é que não guardou mágoa, é que superou o ressentimento, é que dispensou a vingança, é que resolveu por dentro, com a quietude da esperança”.
Exatamente por essas considerações (um tanto psicológicas, um tanto poéticas), captando ideias oriundas do direito europeu (notadamente da Itália, Espanha e Portugal), o nosso sistema jurídico esteja reconhecendo, como um verdadeiro direito da personalidade, o direito ao esquecimento (diritto dell’ oblio, como dizem os italianos). Trata-se de situação jurídica que integra a essência de cada ser, pela sua própria humanidade: as pessoas possuem o direito de terem esquecidos certos fatos, que se colocam em uma paragem remota de um tempo que já passou, não mais produzindo efeitos, nem merecendo integrar o presente, exatamente por não ter futuro.
Não se trata de um direito de apagar ou alterar a história. Menos ainda o direito de se exonerar da responsabilidade (civil e penal) que deflui de nossos atos. Apenas a garantia de que certos fatos que já esvaíram não atormentem a vida atual. O Direito Penal, de há muito, reconhece um direito ao esquecimento das práticas criminosas através da chamada reabilitação – que impede que o fato delitivo acompanhe a vida da pessoa sempre, e para sempre.
De modo sensato e razoável, a orientação jurisprudencial que emana do STJ é no sentido de que o direito ao esquecimento está submetido a uma ponderação (balanceamento) entre os interesses contrapostos: a dignidade de uma pessoa e o interesse na informação e na liberdade de expressão e de imprensa da coletividade. Somente em cada caso, sopesados os valores presentes, é que se concluirá por uma, ou outra, prevalência. Já se teve oportunidade de reconhecer o direito ao esquecimento de uma pessoa que foi acusada pelo MP de participar de Chacina da Candelária, mas absolvida em todas as instâncias judiciais, impedindo a Rede Globo de veicular seu nome em programas sobre o episódio (STJ, REsp.1.334.097/RJ, rel. Min. Luís Felipe Salomão). A outro giro, todavia, foi negado à apresentadora Xuxa Meneghel o direito de impedir o Google de conduzir usuários a informações sobre a sua participação em um filme no qual contracenou uma cena erótica com um adolescente, na década de 80 do século passado (STF, Recl 15.955/RJ, rel. Min. Celso de Mello).
Recebi do amigo (e talentoso Professor de Direito Previdenciário) IVAN KERTZMAN a notícia de que, na Inglaterra, se proibiu o Google de veicular informações sobre uma pessoa, exatamente a partir de uma ponderação dos interesses presentes, na medida em que não há direito absoluto, sendo crível prevalências casuísticas (https://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2018/04/15/mais-um-precedente-google-perde-acao-e-homem-tem-direito-a-ser-esquecido.htm).
O Direito, enfim, é ciência humana aplicada em concreto. Por isso, as situações que permeiam e integram a humanidade das pessoas também estarão presentes no sistema jurídico. Assim sendo, o perdão pode produzir efeitos jurídicos, sem chantagens – por exemplo, o art. 1.818 do Código Civil assevera que o perdão do autor da herança ao herdeiro indigno é irrevogável e irretratável. E, de igual sorte, como o pressuposto do perdão é o esquecimento, o sistema jurídico também reconhece que algumas pessoas têm esse direito, enquanto outras possuem a obrigação de esquecer certos acontecimentos.
Se isso é humano, Isso também é jurídico.
E, sinceramente, perdoar e esquecer pode fazer muito bem às pessoas e ao Direito, como um todo. Afinal de contas, como propõe o inesquecível RUBEM ALVES, “é preciso esquecer para desatar os nós que, no passado, amarramos para toda a eternidade. Grande perdão, grande esquecimento: podemos voar de novo, livres….”
Cristiano Chaves de Farias
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Mestre em Ciências da Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSal). Professor de Direito Civil da Faculdade Baiana de Direito e do Complexo de Ensino Renato Saraiva. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).