Quinta-Feira, 21 de novembro de 2024
Justiça no Interior

“Todo dia deve-se relembrar o combate à violência, para que a gente avance efetivamente”, destaca Janine Ferraz

Na entrevista, a juíza Janine Ferraz falou um pouco sobre o papel do sistema judiciário na garantia dos direitos das mulheres e do seu trabalho como magistrada

 

Foto: Malu Lima

 

Por Malu Lima

 

Na sexta-feira, 08 de março, se comemora o dia internacional da mulher. A data é globalmente reconhecida, pois lembra as conquistas das mulheres ao longo da história e a luta por igualdade de gênero. 

 

Foi instituída em 1910 durante a II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas em Copenhague, na Dinamarca, e reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1977. O dia é marcado por uma variedade de atividades, desde celebrações de conquistas até discussões sobre questões persistentes, como disparidades salariais e violência de gênero.

 

Nesta data, o Justiça no Interior convidou a juíza Janine Ferraz, titular da Vara do Júri e Execuções Penais da Comarca de Vitória da Conquista, para falar um pouco sobre o papel do sistema judiciário na garantia dos direitos das mulheres e do seu trabalho como magistrada.

 

Janine Ferraz é graduada em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), pós-graduada em Gestão e Desenvolvimento de Seres Humanos pela Fundação Visconde de Cairu, pós-graduada em Grandes Transformações Processuais pela UNAMA e pós-graduada em Docência do Ensino Superior pela FTC. Além de juíza, Janine também atua como facilitadora de justiça restaurativa formada pelo Instituto Moinho de Paz e Summer Peacebuilding Institute of the Center for Justice and Peacebuilding. Ela é tutora do curso do Tribunal do Júri da ENFAM e idealizadora do projeto Coração de Tinta. Suas áreas de interesse hoje são: justiça restaurativa, abordagens sistêmicas de justiça, polícia militar, segurança pública.

 

Confira a entrevista completa:

 

MALU LIMA — O Dia Internacional da Mulher foi oficialmente reconhecido pela ONU em 1975. Em sua opinião, o quanto nós avançamos de lá para cá?

 

JANINE FERRAZ — Parece que esse movimento é contínuo, mas, na verdade, eu consigo ver avanços cíclicos. A gente avança, garante direitos e depois entra num retrocesso. O próximo ciclo nunca se inicia no mesmo lugar, ele se inicia um passo à frente. Por exemplo, só em 1977 a lei do divórcio foi promulgada. Até 77, nem homens e nem mulheres tinham o direito sequer de se divorciar. Nessa sociedade, o casamento era indissolúvel, a mulher precisava de autorização do marido para várias coisas, até para viajar. Então acredito que avançamos muito como sociedade, não só avanços da mulher, mas, principalmente, avanços culturais.

 

Ontem (06) eu conversava com meu filho, que tem 22 anos. Ele falou sobre relacionamentos, sobre o que ele pensa quanto a teoria dos papéis, sobre como se engessa quando a gente monta um estereótipo para que as pessoas possam caber nesses papéis, e isso impede que as pessoas sejam quem efetivamente quem elas são, e muitas vezes os relacionamentos se deterioram por causa de uma expectativa que se coloca sobre as pessoas. Então, quando eu penso que posso conversar hoje, com um homem de 22 anos, com essa visão de vida, eu faço parte do time dos otimistas, eu acho que tem muita coisa para avançar, mas eu entendo que nós já avançamos muito como sociedade.

 

MALU LIMA — Em sua opinião, qual a importância dessa data para garantia dos direitos das mulheres?

 

JANINE FERRAZ — Eu não sou uma pessoa muito focada em datas. Eu entendo que é um marco. Contudo, eu defendo a importância de se fazer essa defesa absolutamente todos os dias. Porque a violência não deixa vácuo, nós não temos um dia de paz. Todo dia deve ser o dia de se relembrar do combate à violência, para que a gente avance efetivamente. Mas, não tiro o mérito do dia, da simbologia. Todos esses símbolos são importantes, mas eu não penso nesse avanço enquanto sociedade, só nesse dia. Eu acredito que a gente tem que pensar nisso todos os dias.

 

MALU LIMA — Em sua opinião, mulheres em posição de destaque na sociedade ajudam no empoderamento feminino?

 

JANINE FERRAZ — Eu entendo que sim. Um dia desses eu estava lendo sobre a biografia de Tesla e no início do livro ele fala sobre o que faz com que algumas pessoas se destaquem. Ele também fala sobre a capacidade de imaginar. Imaginar, talvez seja o maior poder humano transformativo. Para imaginarmos, alguns momentos, precisamos ver. Então, quando meninas, adolescentes ou jovens começam a ver mulheres ocupando espaços que, até então, eram inimagináveis para mulheres, elas se tornam imaginativas. Se nós somos capazes de imaginar, nós somos capazes de criar. Então, sim, é importante. Sempre nesse mês me fazem uma pergunta assim: “Qual o papel da mulher na magistratura?”, porque eu ocupo um cargo de poder. Eu tenho uma leve irritação com essa pergunta, porque não tem o papel da mulher na magistratura. Existe o papel do ser humano na magistratura e o papel da mulher é igual o papel do homem, é ser quem ela quiser, defender o que ela quiser. Não tem um lugar, um papel, ou um ponto que a mulher vai fazer. Então, para mim, ocupar esses espaços gera imaginação e inspiração.

 

MALU LIMA — Quais as ferramentas que a justiça tem hoje para que os direitos das mulheres não sejam violados?

 

JANINE FERRAZ — Bem, hoje a gente tem buscado várias formas de proteção. A principal delas é, com certeza, a Lei Maria da Penha. Hierarquicamente, temos a Constituição federal, que diz que homens e mulheres são iguais em direito. A gente também tem algumas normas e ações afirmativas, pois, naquilo que nós nos desigualamos, a legislação busca essa igualdade. Mas pode-se citar aqui os institutos da lei Maria da Penha, as medidas protetivas, que vão desde o afastamento do agressor, até uma prisão em flagrante.

 

Hoje, como eu trabalho, muito próxima da construção de paz, é a minha área de estudo, eu vejo que uma das principais potências que a gente tem desenvolvido é o diálogo interinstitucional e abertura de espaços de aprendizado. Por exemplo, aqui no sudoeste da Bahia, nós desenvolvemos uma capacitação específica para tropas da polícia militar e civil, que também vem convidando instituições como o CREAS, CRAS e CAPS de várias cidades, para que a gente possa falar sobre as diretrizes nacionais contra o feminicídio. Isso surgiu de uma demanda de uma única cidade e já vamos realizar a 14ª formação, que vai acontecer na semana que vem, em Salvador. Vamos capacitar a tropa de Lauro de Freitas.

 

Então, eu penso nisso, porque uma legislação pura e simples não tem o poder de transformar. O poder de transformar vem da alma humana. A gente precisa de pessoas que acreditem nisso e se comprometam com isso. Esse acreditar e se comprometer vem dos espaços de aprendizado. Eu acho muito trágico quando nós precisamos usar as medidas de força, mas elas existem e nós usamos.

 

MALU LIMA — Medidas institucionais como criação cotas, para mulheres, em cargos de poder, são medidas que efetivam igualdade entre homens e mulheres?

 

JANINE FERRAZ — Esse tema de cotas é bastante polêmico. Eu pessoalmente entendo da seguinte maneira: existe um déficit histórico que em alguma medida precisa ser reparado com ações afirmativas. Eu sou a favor de ações afirmativas, mas na minha opinião, os critérios dessas ações afirmativas devem ser pensados. Se eu trouxer para a minha história pessoal, que é a única história sobre a qual eu posso falar, eu digo que só cheguei onde estou porque eu tinha uma rede. Eu tive um pai presente, uma mãe próxima, eu tive a oportunidade de ter uma cuidadora que dividiu comigo os cuidados com o meu filho, meu filho é um filho de um pai presente, então, eu tive a oportunidade de concorrer numa condição muito próxima com os meus colegas homens, por causa de toda uma estrutura. Mas eu sei que eu sou uma exceção, essa não é a realidade de todas as mulheres. Então, por isso que para mim, faz sentido. Enquanto a gente não tiver uma comunidade comprometida com essa igualdade de oportunidades, para mim, as cotas, são importantes. 

 

MALU LIMA — Na sua opinião, essas medidas são eficazes?

JANINE FERRAZ — São eficazes, mas podem ser melhoradas. A gente pode melhorar com uma rede comunicacional melhor, mas o fenômeno da violência é muito grande. Eu, que sou juíza criminal há muito tempo, percebo que durante alguns anos nós temos uma preocupação muito forte com questão das substâncias entorpecentes e do tráfico de drogas, e a pandemia nos solapou. Toda cidade onde vou fazer capacitação, eu peço os índices de violência do município e os maiores números são de violência contra a mulher. Eu acredito que se combato à violência contra a mulher, eu também combato o tráfico de drogas, porque pessoas que vivem em lares pacíficos não precisam se refugiar em substâncias entorpecentes, não precisam se entorpecer de uma realidade que os oprime. Então, as medidas são eficazes, mas diante da onda de violência, a gente precisa fazer um grande trabalho de ensino e informação, para que a gente consiga alcançar a maioria dos casos.


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